Bem-aventurados. O salmista se sente tão arrebatado pela lei do Senhor, que considera como estando conformado a ela seu mais elevado ideal de bem-aventurança. Ele está olhando admirado para as belezas da lei perfeita; e, como se nesse versículo encontrasse a suma e resultado de todas suas emoções, ele exclama: "Bem-aventurado é o homem cuja vida é a transcrição prática da vontade de Deus." A religião genuína não é apática nem árida; ela tem suas exclamações e êxtases. Não só julgamos ser a guarda da lei de Deus uma atitude sábia e correta, mas nos sentimos ardentemente extasiados ante sua santidade, e clamamos em extasiante adoração: "Bem-aventurados são os imaculados!" Significando com isso que ardentemente desejamos tornar-nos assim. Nosso desejo por felicidade não é maior que o de sermos perfeitamente santos. E possível que o escritor tenha laborado sob o senso de sua própria falha, e portanto invejado a bem-aventurança daqueles cuja vida havia sido mais perfeita e santa que a dele; aliás, a própria contemplação da lei perfeita do Senhor na qual ele agora tem ingresso fosse suficiente para levá-lo a deplorar suas imperfeições pessoais e a suspirar pela bem-aventurança de um viver sem mácula.
A religião genuína é sempre prática, pois ela não nos permite deleitar-nos numa regra perfeita sem excitar em nós profundo anelo de conformar a essa regra nossa conduta diária. Uma bênção pertence aos que ouvem, lêem e entendem a Palavra do Senhor; não obstante, uma bênção ainda maior advém da real obediência a ela e concretiza em nosso andar e conversação o que aprendemos em nosso exame das Escrituras. A mais genuína bem-aventurança consiste na pureza de nosso caminho e de nossa caminhada.
Este primeiro versículo constitui não só um prefácio a todo o Salmo, mas pode também ser considerado como o texto sobre o qual o resto é um discurso. E semelhante à bênção do primeiro Salmo, o qual é o próprio cabeçalho de todo o livro: há certa semelhança entre este Salmo 119 e o Saltério, e este é só um ponto dele, que começa com uma bênção. Neste também vemos algumas prefigurações do Filho de Davi, que começou seu grande sermão como Davi começou seu grande Salmo. E bom abrir nossa boca com bênçãos. Quando não podemos concedê-las, podemos apontar o caminho de sua obtenção; e ainda quando nem mesmo as possuamos, pode ser proveitoso contemplá-las, para que nossos desejos sejam excitados e nossas almas movidas a buscá-las. Senhor, se não sou ainda tão abençoado ao ponto de não ser ainda contado entre os imaculados em teu caminho, contudo meditarei intensamente na felicidade que desfrutam, e a porei diante de meus olhos como uma ambição a ser concretizada em minha vida.
Do modo como Davi começa seu Salmo, os jovens deveriam começar suas vidas; os recém-convertidos deveriam iniciar sua profissão de fé; todos os cristãos deveriam começar cada dia. Assentem em seus corações como primeiro postulado e sólida regra da ciência prática que santidade é sinônimo de felicidade; que nossa sabedoria consiste em primeiramente buscar o reino de Deus e sua justiça. O bom começo já é meio triunfo. Começar com uma idéia veraz de bem-aventurança é importante além de toda medida. O homem começou sendo bem-aventurado em sua inocência; e se nossa raça caída visa a ser bem-aventurada outra vez, então ela deve encontrar a bem-aventurança onde ela a perdeu no princípio, ou seja, conformando-se com os mandamentos do Senhor.
Os impolutos em seu caminho. Estão no caminho; o caminho reto; o caminho do Senhor; e guardam o caminho, andando com santa prudência e lavando seus pés diariamente, para que não sejam maculados pelo contato com o mundo. Desfrutam de grande bem-aventurança em suas próprias almas; aliás, já sentem uma prelibação do céu, onde a bem-aventurança é absolutamente impossível de ser maculada; e onde poderão prosseguir plena e perfeitamente sem mancha; na verdade, devem viver já seus dias celestiais na terra. O mal externo pouco nos feriria se fôssemos inteiramente isentos do mal do pecado, cuja obtenção, mesmo para o melhor dentre nós, ainda se encontra na região do desejo, o qual ainda não se concretizou plenamente, ainda que tenhamos uma visão bem nítida do que consideramos ser bem-aventurança propriamente dita, e portanto nos precipitamos avidamente em sua direção.
Bem-aventurado é aquele cuja vida é, no sentido evangélico, impoluta, sem mácula, porque jamais lhe seria possível alcançar esse ponto se infindas bênçãos ainda não lhe houvessem sido derramadas. Somos por natureza impuros e extraviados do caminho; e por isso temos que ser lavados no sangue expiador para que a impureza seja removida, e temos que ser convertidos pelo poder do Espírito Santo, do contrário não nos ingressaremos na vereda da paz, nem seremos íntegros em seu percurso. Mas isso não é tudo, pois faz-se mister que o poder contínuo da graça mantenha o cristão na vereda direita e o preserve da poluição. E preciso que todas as bênçãos do pacto sejam, em certa medida, derramadas sobre aqueles que, dia a dia, são capacitados a aperfeiçoar sua santidade no temor do Senhor. Sua vereda é a evidência de serem eles os bem-aventurados do Senhor.
Davi fala de um elevado grau de bem-aventurança; pois há aqueles que já se encontram no caminho e que são genuínos servos de Deus; todavia se acham ainda maculados de diversas formas e ainda atraem sobre si muitas máculas. Outros andam envoltos em luz mais plena e mantêm comunhão mais íntima com Deus, e são aptos a manter-se imunes das impurezas do mundo, os quais desfrutam de mais paz e alegria do que seus irmãos menos vigilantes. Sem dúvida, quanto mais profunda é nossa santificação, mais intensa é nossa bem-aventurança. Cristo é o nosso caminho, e não só estamos vivos em Cristo como também devemos viver nele. O lamentável é que nós salpicamos sua santa vereda com nosso egoísmo, nossa vangloria, nossa obstinação e nossa carnalidade, perdendo com isso, em grande medida, a bem-aventurança que se acha nele como nosso caminho. O cristão que erra continua salvo, porém deixa de experimentar a alegria de sua salvação; continua redimido, porém não enriquecido; muitíssimo disposto, porém não muitíssimo abençoado.
Quão facilmente pode sobrevir-nos impureza, mesmo em nossas coisas santas, sim, até mesmo no caminho! E até mesmo possível achegarmo-nos para o culto público ou privativo maculados em nossa consciência, quando ainda nos achamos de joelhos. Não havia assoalho no tabernáculo, mas apenas areia; daí os sacerdotes, para o serviço junto ao altar, careciam constantemente de lavar seus pés; e, pela bondosa provisão de seu Deus, o lavatório lhes estava sempre à disposição para que se purificassem. Quanto a nós, nosso Senhor ainda se dispõe a lavar nossos pés, para que estejamos totalmente limpos. E assim nosso texto preanuncia a bem-aventurança dos apóstolos no cenáculo, quando Jesus lhes assegura: "Vós já estais limpos."
Que gloriosa bem-aventurança aguarda os que seguem o Cordeiro para onde quer que ele vá, e são preservados do mal que impregna o mundo de luxúria! Estes atrairão a inveja de toda a humanidade "naquele dia". Ainda que agora sejam menosprezados como fanáticos e puritanos, os mais prósperos dos pecadores então desejarão que possam trocar de lugar com eles. O minha alma, busca tua bem-aventurança em seguir os passos de teu Senhor, o qual foi santo, inculpável, imaculado; pois se até aqui desfrutaste de paz, haverás de desfrutá-la para todo o sempre.
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